domingo, setembro 02, 2012

Skydome Cup: A Taça Que Veio Do Frio (Parte II)


Para que o Luisão seja castigado são necessários mais de 27.000 minutos.
Para que a claque do Nacional se canse são precisos mais de 3.000 minutos de chinfrineira.
Para que o Jorge Jesus provoque repulsa só precisamos de 3 minutos. 1 minuto. Pronto, alguns segundos. Poucos.
E para que José Mota se queixe da arbitragem nem é preciso esperar, é só perder um jogo.
Mas para contar uma boa história são precisos 90 minutos.

90 minutos – a rubrica da Cromos da Bola, SAD, que analisa os factos marcantes da bola lusa. Sem censura. Hoje, a última parte da reportagem que faltava sobre a mítica Skydome Cup, o único título do futebol sénior português.

Ela foi disputada ao milímetro entre a Lara Li e a Ana Zanatti
26 de Janeiro de 1995. Toronto parou para encher em massa a Skydome, num frenesim sem precedentes no país da folha de plátano por causa daquele desporto bizantino, em que não eram necessárias camisolas chumaçadas nem capacetes. Talvez estejamos a exagerar – afinal, compareceram apenas 13.658 almas. Não foi por motivos económicos: os bilhetes custavam entre 9 e 25 dólares canadianos, o que pode ser considerado acessível, para mais considerando o poder de compra local. Até Secretário achava que sim. “Era difícil ir às putas por menos de 70 ou 80 dólares. E só estou a falar do beijinho. Para que nos atassem à cama, vestissem cabedal, levassem o chicote e por aí além era 200 dólares no mínimo, sendo que 100 tinham de ser pagos à cabeça. Nunca tinha visto nada igual. Por isso, penso que os bilhetes eram francamente baratos”. Nas bancadas, eram essencialmente as bandeiras verde-rubras das quinas que se agitavam ao vento do ar-condicionado da Skydome. Podia dizer-se que Portugal jogava em casa, senão por aquele ambiente abafado de pavilhão e um tapete verde que era literalmente um tapete sintético da chamada AstroTurf, em que até era possível vislumbrar as separações entre as faixas ao longo do terreno de jogo, à laia de uma carpete mal amanhada. “Parecia daqueles relvados de massapão dos bolos de aniversário para os putos”, sugere Pedro Barbosa. “A minha primeira reacção foi trincar aquilo”. “A minha primeira reacção foi trincar o Alex”, admite por seu turno Jorge Costa. “Ele tinha cara de Weah”, justifica. E já que falámos em verde-rubro umas linhas acima, convém realçar que a Skydome Cup foi uma competição eminentemente maritimista. A turma madeirense contou com 4 jogadores nesse Canadá – Portugal: Vado e Paulo Alves do lado cubano; Alex e Fernando Aguiar do lado contrário. Aguiar também jogava o seu primeiro encontro com as cores do Canadá. “Estreei-me internacionalmente num jogo entre amigos, que mais um moço simples como eu podia pedir?”, diz-nos um bem disposto Aguiar. “Bom, só podia pedir para que não chegassem muito perto, porque eu, pronto, de vez em quando falhava na bola e podia aleijar. Eheheheh! Estou a brincar! Eu nem sei o que é uma bola”! E, para completar o ramalhete das novidades, até o árbitro auxiliar era uma mulher.

Vado, criativo lusitano, desequilibrado pela fleuma 
neo-hippie de Nico Drasovic no tapete da Skydome.
O jogo começou bem para as hostes lusas. Folha, lesto, ziguezagueou por entre a floresta de matraquilhos que era a defesa canadiana e bateu o guardião da casa, com uma bela vestimenta da moda à laia de Botende, com um remate por entre as pernas deste. Pese embora o recorte técnico do lance, Folha possui memórias difusas do lance. “Sei que fintei um e depois coloquei a bola nas redes”, conta-nos, “mas depois… ficou tudo escuro, só acordei na palestra ao intervalo e disse para mim mesmo «Bolas, onde estou? Então mas não tínhamos acabado de cantar o hino»”? Folha tinha sido vítima da estranha comemoração que era a tradição entre jogadores portistas – o marcador do golo era violentado fisicamente por intermédio de chapadas, carolos, pontapés e tudo o mais que a pérfida imaginação de Paulinho Santos conseguisse engendrar. Felizmente para ele, apenas Secretário e Jorge Costa estavam na Skydome. “Tive sorte, pois cheguei a ver o Domingos a ser suturado com cinco pontos no lábio e a ficar com o sobrolho aberto depois de um grande golo. Desta vez fiquei só com amnésia temporária. Mas eu sei que o Baroni uma vez fez um golo à Maradona nos treinos e, depois da festa que fizemos à volta dele, ficou como todos sabemos”. Durante o resto do jogo, a equipa portuguesa deixou-se embalar pelo conforto e pela aparente debilidade do adversário. Pedro Barbosa descalçou-se para melhor sentir o feng-shui que emanava da carpete, Rui Bento começou a ler o livro “Baresi – Uma História de Vida” sentado na meia-lua e Sá Pinto começou a praticar taekwondo com a sua sombra, por exemplo. E eis quando, num livre perto do final da partida, Neno decidiu sair dos postes para esticar-se um bocadinho e apanhar uma bola alta. Como era costume, falhou miseravelmente. Ninguém o levou a mal. O Neno era um tipo porreiro e já todos sabiam que um cruzamento era meio-golo. Tomaram o acontecimento como uma inevitabilidade. “Foi pena”, admite Neno, “senti que estive bastante afinado durante o jogo todo, os emigrantes estavam a gostar do meu reportório, desde Júlio Iglésias a Cesária Évora, e distraí-me quando alguém pediu por um bis”. O maior azar foi Alex, quem mais?, estar lá para encostar. 1-1.

“É o delírio!”, exultou Miguel Prates
29 de Janeiro de 1995. O tudo ou nada, com uma multidão de 23.700 espectadores a assistir. Uma vitória dava a taça. O adversário era o campeão da Europa, mas apenas com elementos a jogar no seu país, tal como nós, e o empate servia-lhes. Ciente da importância deste jogo, António Oliveira, qual louco, decide jogar com um ponta-de-lança de raiz, Paulo Alves. Todos ficaram a perceber que a coisa era a doer, para mais se pensarmos que os playmakers eram Nelo e Vado, com a rapidez de Pedro Barbosa e a acutilância de Folha pelas alas. “O mister estava doido”, assegura-nos Paulo Madeira. “Vimos os seus olhos de fúria quando nos revelou que íamos jogar com dois extremos mais ou menos abertos e apenas dois trincos, sendo que um até costumava passar do meio-campo. Era uma táctica temerária… E ainda havia mais um avançado e um extremo no banco! Acho que o Taira se acagaçou todo com as responsabilidades”. Foi verdade? “Não, não, eu nem sequer fui ao Canadá”, nega Taira, algo incomodado com a questão. “Mas devia ter ido! Agora, se me perguntam por um suspeito… Eu acho que foi o Barroso”.“Prefiro não comentar”, responde Barroso, enquanto se tranca no WC, despedindo-se abruptamente da nossa reportagem. Regressando ao jogo, o tempo passava e o nó não se desatava. Rui Bento sai para dar lugar a Tulipa. Ficámos a jogar apenas com um médio defensivo, que ousadia. Depois Vado, acusando a pressão, cede para entrar Sá Pinto, que foi correr lá para a frente à sua maneira, tipo barata-tonta. Cheirava a desespero. E por fim, a clássica troca de extremos, Folha por Caetano. Tanta profusão atacante era uma coisa inimaginável. Já era tudo ao molho e fé em Deus. Minuto 89. Jorge Costa, destemido, ultrapassa todas as convenções e leva a bola como pode pelos dinamarqueses, que ficam atordoados como se estivessem no olho de um furacão, entrega a Pedro Barbosa, este ginga até à linha de fundo como uma serpente que hipnotiza os passarões nórdicos, cruza, a bola sofre um desvio e Paulo Alves diz que sim com um pontapé de belo efeito. O momento alto de uma carreira? “Talvez”, admite por entre sorrisos. “Lembro-me que festejei como se estivesse a fugir do bafo do Presidente Fiúza, o que atesta bem da minha felicidade”. Segue-se a celebração colectiva, merecida, destes valorosos guerreiros. “Até eu corri à volta do pavilhão dessa vez, tamanha foi a festança”, conta-nos Pedro Barbosa. Caetano diz-nos “eu queria festejar, a sério que queria, porque podia ser a última vez que iria festejar qualquer coisa de jeito que não fosse o meu aniversário, o que até se veio a provar verdadeiro, mas durou pouco porque o roupeiro enganou-se, arrumou-me junto das bolas e não mais consegui sair de lá. Viajei de volta dentro do porão do avião”.
 

Quem mais carismático que o capitão Nelo 
poderia alardear esta taça aos céus?
Skydome. O nome que associamos a sapatilhas sem pitons, jogos a altas horas da noite por causa do fuso horário e a uma taça erguida por Nelo. “Sei que vão tentar minimizar o meu impacto na história do desporto português”, acusa um dorido Nelo, incapaz de calar o que pressente ser uma enorme injustiça. “Os registos fotográficos estão aí: fui eu o capitão dessa equipa. Mas hoje só querem falar da minha época no Benfica, do meu cabelo e do meu nome pouco mediático, que o Herman José ajudou a não dignificar. É triste”. Hoje em dia, o espaço Skydome que conhecíamos já não existe. Passou por algumas agruras após esta grandiosa vitória portuguesa, ao jeito de um estádio do Euro-2004, e foi considerado “um elefante branco”. “Sei bem o que isso é!”, atira prontamente Secretário, com os olhos a brilhar e as mãos em actividade dentro dos bolsos das calças. Abriu falência em 1998, foi comprado por 85 milhões, depois vendido à Rogers Communications em 2004 por apenas 25 milhões de dólares – ou seja, apenas 4% do custo inicial – e foi redenominado Rogers Centre. Mas a taça do nosso contentamento, o nome que ficou indelevelmente cravado nos nossos corações, será sempre Skydome.

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